DO BELO LIVRO DE NELSON SAMPAIO JUNIOR
Por Amin Stepple
Duas notícias, ambas impactantes, e de regiões diferentes do planeta, chegaram recentemente às paginas cinematográficas dos cadernos culturais. A primeira trata, infelizmente, de fatos melancólicos, irreparáveis. E veio dos Estados Unidos, o maior produtor de cinema de todos os tempos. Uma tragédia para a memória do que é considerada, ainda, a grande arte de massa. Uma braçadeira de luto envolve a nota jornalística:Mais de dois terços dos filmes mudos rodados nos Estados Unidos entre 1912 e 1929, incluindo alguns de Ernst Lubitsch e da atriz Clara Bow, se perderam - diz um informe publicado nesta quarta-feira (4) pela Biblioteca do Congresso norte-americano.O informe, tutelado pela Associação Nacional de Preservação do Filme (NFPB), indica que de 11.000 filmes de ficção realizados durante o período do cinema mudo, "somente 14% - ou seja, 1.575 títulos - ainda existem em seu formato original, 35mm".
Em contrapartida, a boa notícia. O lançamento da biografia "Ary: um Bandeirante do Cinema Brasileiro", do jornalista Nelson Sampaio Junior. Ary Severo foi um dos gênios do cinema silencioso produzido em Pernambuco entre os anos 1923 e 1931. Pioneiro, ao lado de outros apaixonados pelo cinema, a exemplo de Gentil Roiz, Edson Chagas e Jota Soares (e outros tantos utópicos abnegados), Ary Severo foi ator e diretor de alguns filmes que marcaram o que historicamente se conhece por "Ciclo do Recife". Entre os quais, "Aitaré da Praia", classificado por historiadores do cinema brasileiro como um dos dez melhores filmes já rodados no país.
Resultado de cinco longos anos de pesquisa, o livro de Nelson Sampaio retoma e recoloca a historiografia do cinema pernambucano no paradigma de compromisso de seriedade e de absoluta fidelidade na apuração dos fatos e interpretações dessa marcante fase da vida cultural de Pernambuco. Historiador honesto e desprovido de falsas veleidades e arrogâncias acadêmicas, Nelson Sampaio recorre às fontes primárias e originárias sobre o Ciclo do Recife. Não comete o embuste, tão normativo nos tempos recentes, de sonegar os créditos e os méritos dos que, antes dele, se dedicaram ao estudo, recuperação e valorização da memória cinematográfica dos anos 20. Fica difícil depois de "Ary: um Bandeirante do Cinema Brasileiro", o lançamento de novas peças memorialísticas confeccionadas, essa é a impressão, em áreas de serviço de minúsculos apartamentos, à sorrelfa do rigor histórico que o tema deve merecer. Um biógrafo não pode sofrer da síndrome de inferioridade.
O livro de Nelson Sampaio, cuja escrita é suavemente jornalística, o que facilita e desperta o interesse do leitor (curioso ou não pelo que aconteceu na longa noite de nitrato dos anos 20 do século passado), é um complemento necessário e imprescindível ao trabalho de outros pesquisadores do cinema mudo pernambucano, realizado ao longo das décadas, a exemplo de Lucila Bernadet, Fernando Spencer e Celso Marconi (em cujo elenco, modestíssimamente, me incluo, com textos escritos e filmes realizados). A saga de Ary Severo, da atriz Almery Steves (mulher de Ary e a primeira grande diva do cinema pernambucano) e dos outros visionários é relatada como se estivéssemos assistindo também a um filme, feito na época. Aliás, destaquem-se ainda as belas fotos que ilustram o livro. Esse resgate iconográfico é consequência, obviamente, de uma exaustiva pesquisa em arquivos mofados das primeiras décadas do eletrizante século XX.
No momento em que o cinema pernambucano conquista relevante espaço na mídia nacional e internacional, com a produção de bons filmes polêmicos e experimentais, o livro "Ary: um bandeirante do cinema brasileiro" chega às livrarias na hora certa. É possível compreender o boom produtivo do presente pelos labirintos estéticos e ousados das latas enferrujadas do passado. Ary Severo certamente é o avô inventivo de Kleber Mendonça, de Lírio Ferreira, Marcelo Gomes, Claudio de Assis, de Hilton Lacerda e de centenas de outros jovens diretores, atores e técnicos (quando não se dá para nada, se faz cinema, uma boa solução familiar e social) que grassam em todas as esquinas sujas e nas calçadas esburacadas do Recife. Se vivo, fisicamente, e não apenas nas obras que deixou, Ary Severo poderia cantarolar, com a sua magnética simplicidade e reconhecida humildade, versos do cancioneiro popular: "os bichinhos tão criados, satisfeitos os meus desejos".
É preciso olhar com atenção o lamentável exemplo americano, que destruiu o seu bonito pretérito mudo. O melhor plano agora é segurar a tocha olímpica da memória inflamável do nitrato. Resolvida a árdua tarefa de biografar Ary Severo, cabe agora a Nelson Sampaio dedicar mais outros anos de pesquisa à figura genial do cinema mudo pernambucano: o diretor e excelente ator Jota Soares.
Vamos lá, Nelson Sampaio Junior. Antes que outro aventureiro lance mão. Depois da biografia de Ary Severo, não vale mais bilhete pirata para se entrar na sala escura dos sonhos de várias gerações de pernambucanos. E o ingresso já está precificado: no mínimo, cinco anos de severa (inevitável, o trocadilho) pesquisa. Como dizem dez entre dez blogs, boa leitura.
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